A Bela da Tarde

Hoje no curso de cinema falamos de Buñuel, o diretor espanhol que fazia parte do movimento surrealista e ficou famoso mundialmente por comandar Catherine Deneuve em A Bela da Tarde (ou, Belle De Jour). Eu já tinha visto esse filme faz uns 3 anos, me lembrava de algunas coisas, mas assistindo a novamente fiquei com vontade de comentar como essa personagem feminina é das mais ricas da história do cinema.

Você pode imaginar o barulho que foi causado por um filme que começa com uma sequência de flagelação e estupro, incorporada por uma belíssima loira de ar aristocrático, em plena década de 60? A Bela da Tarde é de 1966 e arrisco dizer que o mesmo frisson da época se repetiria atualmente, tamanha ousadia na maneira como Buñuel trata o sexo no roteiro. Apesar da banalidade com que se trata o sexo hoje, o filme não tem nada de datado. Pelo contrário.

Mas vamos a Catherine... ou melhor Séverine, sua personagem no filme. Ela é uma mulher rica, linda e bem-casada. O marido médico, é completamente apaixonado por ela, bonzinho, honesto, comprometido em formar uma família. Ela vive, então, no que seria idealmente o sonho realizado de qualquer mulher - uma vida quase perfeita, exceto pelo fato de que não sente tesão pelo marido. Séverine é frígida, condição que é possível ver em seu rosto no começo do filme. Apática, com o olhar perdido, suas fantasias sexuais reprimidas só têm vazão quando ela está sonhando ou imaginando coisas.

Não quero entrar no mérito de A Bela da Tarde como filme aqui. Quero apenas falar de Séverine. Quanto mais o marido demonstra seu amor e devoção por ela, menos tesão ela sente por ele. Os dois dormem em camas separadas. Elegante, dona de modos refinados, ela passa as tardes fazendo compras ou jogando tênis, até que descobre o endereço de uma casa de prostituição. É lá que vai dar vazão aos seus desejos sexuais reprimidos pela instituição do casamento, pelo marido, pela vida aristocrática repleta de regras de comportamento.

Séverine quer ser subjulgada. É isso que ela procura no bordel. Quer se sentir submetida, forçada, dominada. É assim que ela se sente excitada, assim que sua sexualidade desperta e sai da frígidez. Enquanto as outras colegas de prostituição provavelmente fazem sexo por dinheiro, Séverine o faz por prazer e deixa isso claro em diversas sequências do filme. Em pouco tempo, já domina o ambiente e suas atribuições quando recebe algum cliente.

A questão mais intrigante acerca da personagem é: não existe nenhum agente externo que a leve para a prostituição. Teoricamente, não lhe falta nada: beleza, amor, dinheiro, devoção, fidelidade... O que ela não tem é desejo sexual. E a história se complica porque quanto mais ela se liberta de sua frigidez transando com outros homens, mais ela sente que ama o marido. Em nenhum momento, no entanto, esses dois sentimentos - amor e tesão - se encontram na figura dele.

Séverine se deita com homens absolutamente repugnantes. Um chinês gordo, um velho com tara por necrofília, um criminoso andrógino, todas figuras que passam ao largo do homem que tem em casa. E ela encara os fetiches dos outros com prazer e se sente bem ao estar envolta por eles. Séverine é mazoquista e voyer; a medida que vai se libertando do casulo de mulher de alguém, de dama da sociedade, de esposa virtuosa, se torna mais sensual a cada plano. E tudo isso acontece de maneira muito, mas muito sutil.

A personagem de Deneuve é extremamente complexa. E o que eu mais gosto no filme é a maneira como se lida com essas questões sexuais sem que haja rótulo. Séverine queria ser submetida, humilhada; o marido, por sua vez, não parecia se incomodar muito com a frigidez da esposa. Julgo até que, para ele, seria natural, já que Séverine deve se apresentar como sua "bonequinha de luxo", uma esposa linda e virtuosa que inspirasse desejo nos outros homens, mesmo que ele próprio não conseguisse dormir com ela. Como "Bela da Tarde" ela era uma mulher que estava disposta a tudo, enquanto que, como esposa, não poderia aceitar sequer uma brincadeira de duplo sentido vinda do amigo do marido.

A Bela da Tarde é um filme imperdível e polêmico. Assista preparado para ver o sexo de uma maneira totalmente fora do convencionalmente mostrado no cinema das mayors americanas. Claro, não há nem o que comparar entre Buñuel e EUA - dois mundo diferentes. Para as mulheres, então, é uma surpresa ver o tratamento dado a Séverine. Em nenhum momento ela é "desqualificada" pelo sistema. Toda a humilhação que passa é, de certa maneira, comandada por ela. E a agrada. Tudo muito sutil, tons pastéis, e muito real, ainda que tenham partes de sonho entrecortando o que se chamaria de realidade.

Para finalizar, Catherine Deneuve. Não sei se já mencionei, mas adoro as divas do cinema. Garbo, Hayworth, Bardot, Hepburn (as duas), Loren, Ekberg, Dietrich, Gardner, Kelly, Monroe e, claro, Deneuve. Ela está linda no filme, uma mulher de verdade, uma interpretação fortíssima. Quanta diferença das starlets de hoje. Uma jujuba para quem me disser qual dessas atrizes da atualidade teria coragem (e talento) para encarnar um papel como o de Séverine. Abaixo, um trailer do filme que eu achei no YouTube.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ai, Lu. Gosto tanto do seus textos, sabia? Fiquei até com vontade de assistir o filme.
Cris

Anônimo disse...

Sensacional! Mais nada a comentar! Bjs